A despedida*
Fez ontem sete anos que ele me olhou, derradeiramente, com aqueles olhos verdes cansados, exausto, sem pressa para partir mas sem esperança de ficar. Era meio-dia, e não me esqueço que me chamou para aquela última conversa que não chegou a sê-lo verdadeiramente, limitando-se a uma troca de olhares e decisões consentidas: − Vou-me embora. – Vai, meu querido, vai em paz.
Antes, tinha-me mudado de armas e bagagens para aquela casa. Montara o meu quartel-general no quarto que já antes havia sido meu e que, fazia alguns meses, deixara de o ser. Ambos sabíamos qual iria ser o desfecho daquela situação, mas tacitamente havíamos decidido tentar inverter o destino ou prolongar a sorte. E passámos bons momentos. Passeávamos de manhã junto à praia, com o sol a aquecer-nos o corpo, e o cheiro húmido das flores a perfumar-nos os sentidos. Visitávamos o jardim da outra casa, aquele ali, a dois passos, que viria a ser mais tarde dele, e sentávamo-nos a conversar e a ver o voo rasante das gaivotas no mar em frente ou, pura e simplesmente, a desfrutar da companhia um do outro e dessa preciosidade, única dos verdadeiros amigos, que são os silêncios comunicantes. Quando passavam por nós, as pessoas interrogavam-se − e interrogavam-me a mim, pois sabiam que ele jamais teria respondido − como, sendo tão diferentes, podíamos ser tão cúmplices, tão unidos, um, ali, sempre ao lado do outro, num passeio que já era longo e que poderia, na verdade, ter sido ainda mais. Mas não foi. E alguns dias antes eu aceitei, finalmente, que assim não iria ser e consenti, mentalmente e, até por oração − confesso − a sua partida.
Então, ele chamou-me naquele dia e eu, mesmo estremunhada, saída de um sono irrequieto, várias vezes interrompido pela vigília, soube o que ele tinha para me dizer. Sentei-me calmamente ao seu lado, sem dramas, nem pânico, pois não queria que a ultima recordação que levasse de mim fosse o choro ou o desespero e pacientemente deixei-o suspirar… Uma, duas, três vezes. Depois passei carinhosamente a minha mão pela sua cabeça, descendo pelo corpo, macio e quente, tentando guarda-lo na memória, através daquela espécie de braillle. E coloquei-lhe ao pescoço o colar, aquele que lhe dera, faz tempo, e que usara durante anos como uma espécie de aliança, um sinal de união, que o ligava, definitivamente, a mim. Dentro, escrito a letras finas, miudinhas, bem desenhadas, um nome e um número identificavam a nossa amizade, eternizando aquele casamento perfeito entre nós. Dentro, gravados no metal, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte nos separe, estavam o meu nome e o meu número de telefone.
E, então, pus-lhe o colar, cuidadosamente, e despedi-me para sempre, ou até qualquer dia, quem sabe, numa voz baixinha e meiga, quase um sussurro, como aquela com que se fala aos filhos pequenos quando, à noite, os estamos a adormecer: − Vai em paz, meu querido, descansa, agora, em paz, meu gato lindo.
Antes, tinha-me mudado de armas e bagagens para aquela casa. Montara o meu quartel-general no quarto que já antes havia sido meu e que, fazia alguns meses, deixara de o ser. Ambos sabíamos qual iria ser o desfecho daquela situação, mas tacitamente havíamos decidido tentar inverter o destino ou prolongar a sorte. E passámos bons momentos. Passeávamos de manhã junto à praia, com o sol a aquecer-nos o corpo, e o cheiro húmido das flores a perfumar-nos os sentidos. Visitávamos o jardim da outra casa, aquele ali, a dois passos, que viria a ser mais tarde dele, e sentávamo-nos a conversar e a ver o voo rasante das gaivotas no mar em frente ou, pura e simplesmente, a desfrutar da companhia um do outro e dessa preciosidade, única dos verdadeiros amigos, que são os silêncios comunicantes. Quando passavam por nós, as pessoas interrogavam-se − e interrogavam-me a mim, pois sabiam que ele jamais teria respondido − como, sendo tão diferentes, podíamos ser tão cúmplices, tão unidos, um, ali, sempre ao lado do outro, num passeio que já era longo e que poderia, na verdade, ter sido ainda mais. Mas não foi. E alguns dias antes eu aceitei, finalmente, que assim não iria ser e consenti, mentalmente e, até por oração − confesso − a sua partida.
Então, ele chamou-me naquele dia e eu, mesmo estremunhada, saída de um sono irrequieto, várias vezes interrompido pela vigília, soube o que ele tinha para me dizer. Sentei-me calmamente ao seu lado, sem dramas, nem pânico, pois não queria que a ultima recordação que levasse de mim fosse o choro ou o desespero e pacientemente deixei-o suspirar… Uma, duas, três vezes. Depois passei carinhosamente a minha mão pela sua cabeça, descendo pelo corpo, macio e quente, tentando guarda-lo na memória, através daquela espécie de braillle. E coloquei-lhe ao pescoço o colar, aquele que lhe dera, faz tempo, e que usara durante anos como uma espécie de aliança, um sinal de união, que o ligava, definitivamente, a mim. Dentro, escrito a letras finas, miudinhas, bem desenhadas, um nome e um número identificavam a nossa amizade, eternizando aquele casamento perfeito entre nós. Dentro, gravados no metal, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte nos separe, estavam o meu nome e o meu número de telefone.
E, então, pus-lhe o colar, cuidadosamente, e despedi-me para sempre, ou até qualquer dia, quem sabe, numa voz baixinha e meiga, quase um sussurro, como aquela com que se fala aos filhos pequenos quando, à noite, os estamos a adormecer: − Vai em paz, meu querido, descansa, agora, em paz, meu gato lindo.
*Para o Rurru
© Sofia Bragança Buchholz, 2005. Reprodução Interdita
[8.07.05]
8 Comments:
O conto prometeu outra história, e eu, embarquei completamente como quem parte para a revisita de uma viagem conhecida, mas esta reviravolta no final, parece-me que só lhe lembraria a si.
Obrigado pelo que prometeu e também pelo insólito.
Bonito :)
bjoquinhas
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Por mais estranho que pareça, este é um dos mais reais contos que tenho aqui publicados e o fim, esse, foi exactamente assim, alguns meses depois de ter sido diagnosticada ao meu gato uma insuficiência renal grave.
O “truque” do efeito literário está, obviamente, na “humanização” dos sentimentos do animal.
sabiamos e haviamos, ok?
Um pouco de atenção, por favor. Uma escritora não deve fazer erros destes.
Depois de apreender a mensagem, escusa de postar este comentário.
Tem toda a razão nos erros que apontou, Perplexo. Obrigada pelo reparo.
Mas, já agora, peço-lhe também um pouco de atenção para o informar que não é “sabiamos e haviamos" como sugeriu, mas sim, sabíamos e havíamos.
Como vê, “errar humanum est”.
Tem razão. Cubro os «sabíamos e havíamos» e aumento para «errare humanum est» e não como foi escrito.
Mas que par de ignorantes!
:))
AH AH AH … isto começa a ter piada!
Detesto ter de dizer isto, mas, Perplexo,… acabou de ganhar uma bicicleta! ;-)
(Desta vez até usei o corrector ortográfico e tudo. Bolas, não vá o dedo fugir-me para a tecla do lado!)
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