— Sabe o que é que se passa, Doutor?
"...
— Doutor, voltei a sentir-me mal. Piorei, e tenho dificuldade em respirar. É insuportável... às vezes acho que vou sufocar.
Ele fora realmente apanhado de surpresa. Acho até que demorou algum tempo a reconhecer-me. Talvez não quisesse acreditar no que via. Cheguei a ter medo da sua reacção, e a sentir mesmo, naquele momento, falta de ar e o coração a bater descompassadamente, mas relaxei quando o vi levantar-se com o estetoscópio na mão, sentar-se na cadeira ao lado da minha e dizer:
— Não se preocupe, vamos já ver isso.
Preparava-se para me puxar a camisa para cima, à frente, quando tocou o telefone. Levantou-se para o atender.
— Sim, já entrou — e após um segundo de silêncio: — Não, não tem importância.
Pousou calmamente o telefone. Voltou a sentar-se. Sorriu-me com um ar malandro. Estava calmo, muito calmo e controlava, com o seu charme, de novo a situação. Eu, pelo contrário, tremia, e, quando ele encostou o estetoscópio frio no meu peito, tive a sensação de o ouvir bater nos ouvidos do João. Ele olhou-me em silêncio, piscou-me o olho. Eu fiquei ali, imobilizada, novamente com o meu coração nas suas mãos.
Retirou o estetoscópio dos ouvidos e deixou-o pendurado no pescoço, como se fosse um colar. Tentava desabotoar-me a manga camisa para me medir a tenção.
— Há quanto tempo sente essa falta de ar? — perguntou, colocando à volta do meu braço a braçadeira do aparelho.
— Há três dias — respondi sem hesitar.
— E quando é que se sente pior?
— À noite.
— Quando está deitada?
— Também.
— Também? — fixou os seus olhos nos meus.
— A partir das nove horas, começo a sentir falta... — calei-me porque ele voltara a pôr o estetoscópio.
Olhei-o em silêncio, agora verdadeiramente compenetrado no que fazia. Ouvi a som da bomba a encher a braçadeira, senti a sua pressão forte no meu braço, e depois o suspiro, o longo suspiro, a esvaziar-se.
— A partir das nove horas começa a sentir falta? Só a partir das nove horas? — gozou, muito sério, usando exactamente as minhas palavras.
Eu corrigi.
— ... de ar.
— Só a partir das nove horas? — repetiu.
Eu fiz que não com a cabeça.
— E quando toca o telefone — acrescentei.
Ele sorriu, um sorriso diferente do que fizera até então, baixou ligeiramente os olhos, voltou a levantá-los, e só depois foi capaz de me olhar outra vez.
— E de manhã, e à tarde... — continuei.
Os nossos olhos encontravam-se de novo, mas os dele fugiam, para voltarem de seguida, arrependidos, presos aos meus. Mediamos forças com o olhar e ganhava eu, mas preferia vê-lo triunfar a ele, porque a sua segurança me fazia mais feliz do que a minha própria.
Voltei a entregar-me nas suas mãos, deixei-o fazer o diagnóstico.
— Sabe o que é que se passa, Doutor?
..."
© Sofia Bragança Buchholz
In "De Mãos Dadas com a Perfeição", págs 172-173;
Editorial Presença, 2003
— Doutor, voltei a sentir-me mal. Piorei, e tenho dificuldade em respirar. É insuportável... às vezes acho que vou sufocar.
Ele fora realmente apanhado de surpresa. Acho até que demorou algum tempo a reconhecer-me. Talvez não quisesse acreditar no que via. Cheguei a ter medo da sua reacção, e a sentir mesmo, naquele momento, falta de ar e o coração a bater descompassadamente, mas relaxei quando o vi levantar-se com o estetoscópio na mão, sentar-se na cadeira ao lado da minha e dizer:
— Não se preocupe, vamos já ver isso.
Preparava-se para me puxar a camisa para cima, à frente, quando tocou o telefone. Levantou-se para o atender.
— Sim, já entrou — e após um segundo de silêncio: — Não, não tem importância.
Pousou calmamente o telefone. Voltou a sentar-se. Sorriu-me com um ar malandro. Estava calmo, muito calmo e controlava, com o seu charme, de novo a situação. Eu, pelo contrário, tremia, e, quando ele encostou o estetoscópio frio no meu peito, tive a sensação de o ouvir bater nos ouvidos do João. Ele olhou-me em silêncio, piscou-me o olho. Eu fiquei ali, imobilizada, novamente com o meu coração nas suas mãos.
Retirou o estetoscópio dos ouvidos e deixou-o pendurado no pescoço, como se fosse um colar. Tentava desabotoar-me a manga camisa para me medir a tenção.
— Há quanto tempo sente essa falta de ar? — perguntou, colocando à volta do meu braço a braçadeira do aparelho.
— Há três dias — respondi sem hesitar.
— E quando é que se sente pior?
— À noite.
— Quando está deitada?
— Também.
— Também? — fixou os seus olhos nos meus.
— A partir das nove horas, começo a sentir falta... — calei-me porque ele voltara a pôr o estetoscópio.
Olhei-o em silêncio, agora verdadeiramente compenetrado no que fazia. Ouvi a som da bomba a encher a braçadeira, senti a sua pressão forte no meu braço, e depois o suspiro, o longo suspiro, a esvaziar-se.
— A partir das nove horas começa a sentir falta? Só a partir das nove horas? — gozou, muito sério, usando exactamente as minhas palavras.
Eu corrigi.
— ... de ar.
— Só a partir das nove horas? — repetiu.
Eu fiz que não com a cabeça.
— E quando toca o telefone — acrescentei.
Ele sorriu, um sorriso diferente do que fizera até então, baixou ligeiramente os olhos, voltou a levantá-los, e só depois foi capaz de me olhar outra vez.
— E de manhã, e à tarde... — continuei.
Os nossos olhos encontravam-se de novo, mas os dele fugiam, para voltarem de seguida, arrependidos, presos aos meus. Mediamos forças com o olhar e ganhava eu, mas preferia vê-lo triunfar a ele, porque a sua segurança me fazia mais feliz do que a minha própria.
Voltei a entregar-me nas suas mãos, deixei-o fazer o diagnóstico.
— Sabe o que é que se passa, Doutor?
..."
© Sofia Bragança Buchholz
In "De Mãos Dadas com a Perfeição", págs 172-173;
Editorial Presença, 2003
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