quinta-feira, fevereiro 24, 2005

De Mãos Dadas com a Perfeição

"...

Sou a terceira filha de uma união perfeita entre um advogado e uma bióloga. Digo terceira, porque apesar de ter partilhado durante nove meses a placenta com a minha irmã e de termos nascido no mesmo dia, ela, como iria acontecer sempre na nossa vida, decidiu-se primeiro e resolveu encarar o mundo antes de mim.
Tive uma infância feliz, daquelas infâncias invejáveis, que nem o meu problema cardíaco congénito conseguiu estragar. Passei Verões inteiros na praia e na piscina, Setembros na Quinta rodeada de primos e amigos e mesmo estando proibida de fazer esforços, como andar de bicicleta ou correr, e ser “vigiada” por um adulto vinte e quatro horas por dia, muitas vezes a minha imaginação se soltou e suplantou todas as limitações que me eram impostas. Nunca me vou esquecer da areia macia e quente a acariciar-me o corpo depois dos banhos frios no mar. Dos gelados à hora do lanche. Da avó a chamar-nos e nós a adiar-mos sempre a partida, quando o pai chegava ao fim da tarde, para nos vir buscar. Das algas que vendíamos como mercadorias preciosas. Dos camarões que apanhávamos como se fossem lagostas. Dos caranguejos que perseguíamos. Das “amonas” na piscina. Dos saltos, da prancha, do meu primo Henrique. Dos pic-nics no rio. Dos bolos da Ló. Não sei porquê, mas não recordo dias frios na minha infância. Noites sim, às vezes, chegavam mesmo a ser assustadoras.
Na minha opinião, uma das vantagens da minha doença foi o adiamento da nossa entrada no Colégio Alemão. Fomos dispensadas do Kindergarten, mas em compensação recebemos, durante dois anos, aulas privadas em casa. A directora do colégio era nossa vizinha e amiga da minha mãe e, pacientemente, a sua filha Astrid, todos os dias, durante três horas, brincava connosco e ensinava-nos alemão. Era a nossa única obrigação naquele tempo em que reinava a liberdade total.
...

Vestiram-nos de igual, aqueles vestidinhos de fazenda ao xadrez azul e vermelho que tinham sido comprados para a ocasião, pentearam-nos os cabelos e serviram-nos o pequeno-almoço que, noutras circunstâncias, teria sido o melhor da minha vida: torradas, leite com Todi, gelatina de morango e um Super-Maxi para cada uma! No fim ainda nos entregaram um cone enorme, cheio de chocolates, rebuçados e outras surpresas, para ser aberto como mandava a tradição alemã, na escola, no primeiro dia de aulas.
— As nossas meninas estão umas senhorinhas! — dizia a minha mãe orgulhosa à Ló, enquanto abria a porta do carro para nós entrarmos.
E a outra respondia como se fossemos na verdade suas filhas, que era assim que ela nos sentia:
— Estão tão bonitas!
E o meu irmão Dinis a ameaçar:
— Vejam lá se não chateiam, ouviram? — E avisava a minha mãe: — Ó mãe, diga-lhes para elas não me chatearem, está bem, mãe?!
E continuava para nós, a desbobinar um rol de regras:
— Não falem comigo quando estou com os meus amigos. Não vão ter comigo quando estou com os meus amigos...
E, como a minha mãe o interrompia para o chamar à atenção, ele sintetizava, sem ela o ouvir, mas para nós numa voz suficientemente clara:
— Não falem comigo, ouviram?! Simplesmente não falem comigo!
“Como podiam ser parvos os rapazes com onze anos!”, teria eu pensado hoje, mas naquela altura, parecera-me suficientemente ameaçador.
E depois os beijinhos. Um beijinho ao pai, que estava também orgulhoso; um à avó Margarida, que tinha vindo de propósito a nossa casa para assistir àquele evento; um à Ló, com abraço apertado incluído; e um ao Lord, que era o nosso Basset Hound, mais roubado do que consentido, porque a minha mãe estava presente e achava uma porcaria deixar que o cão nos desse beijos na cara.
Toca a andar, que já é tarde, lá nos meteu a mãe no carro, o Dinis sempre a “rosnar”, e eu a olhar para trás, pelo vidro traseiro, a acenar interminavelmente à Ló e à avó, como se fosse numa viagem muito longa e para muito longe, quando na realidade me afastaria apenas dois quarteirões e estaria de volta à uma hora da tarde.
São tão grandes as distâncias na infância e tão longas as horas quando somos crianças... que nem nos passa pela cabeça como, num passe de mágica, elas se encurtam e aceleram, contra nossa vontade, quando nos tornamos adultos."

© Sofia Bragança Buchholz

In "De Mãos Dadas com a Perfeição", págs. 104-105, 108-109; Editorial Presença 2003