quarta-feira, janeiro 18, 2006

A brincadeira

Demiurgo regressou ao Aldebarã nessa noite.
Deparou-se à entrada com um Camões elegante, bem vestido, de collants acetinados, branco-pérola, de fazer inveja à Donzela dos Muitos Prazeres, e, no olho, uma pala preta, brilhante, de onde sobressaía, numa pedraria fina de diamantes, o logótipo da casa Dior.
Perdia-se com o porteiro do estabelecimento, um tipo alto, cavalão, todo ele chumaços e volumetria, numa discussão acesa sobre o amor que garantia ser fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente, enquanto o outro, de ar céptico e mente muito menos elaborada, parecia ter escrito no olhar escuro de toiro Ribatejano uma forma bem mais simples e brejeira de o descrever.

Thomas Mann também lá estava. Numa das muitas salas do
Aldebarã montara a sua Montanha Mágica que deliciava as memórias de infância dos ilustres. Era vê-los fazerem fila para jogar! A brincadeira consistia numa corrida em que dois concorrentes, depois de terem tomado uma mágica poção de que só Mann conhecia o segredo e que os fazia diminuir a um tamanho minúsculo, tinham de percorrer um sinuoso caminho até ao topo da Montanha, passando por túneis, parando em estações, dando passagem a rebanhos de ovelhas, subindo caminhos íngremes… entre muitos outros obstáculos. Ganhava quem primeiro chegasse lá cima, ao belíssimo sanatório, se metesse mais rapidamente na cama e enfiasse primeiro o medidor de febres na boca.
A confusão instalou-se quando todos queriam ser os primeiros a jogar. Ouve quem fizesse birras, histerias, choradeiras. Eça de Queirós amuou. Pegou-se ao estalo com Proust que o acabou por vencer. E Eça foi aninhar-se no chão, a um canto, emburrado, de braços cruzados sobre o peito e ar zangado.
Alguém teve a ideia de se implementar um sistema de senhas que garantisse a ordem naquele tumulto. Mas não resultou, pois todos reclamavam, também, o lugar pioneiro na recolha da dita rifa.
Fernando Pessoa negou-se a tomar o antídoto da poção, para regressar ao seu tamanho normal. Queria ser piquinino, dizia convicto, numa voz infantil.

Já a noite ia alta quando Demiurgo deixou o
Aldebarã. Pessoa dormia a sono solto ao colo de Milena que se deliciara a dar-lhe o peito, assegurando-lhe, depois, as palmadinhas nas costas para lhe garantir o arroto e o mimara, ternamente, até adormecer, com belas canções de embalar. [SBB]


Nota: O Bar Aldebarã é um projecto e ideia única e exclusivamente da autoria e responsabilidade dos escritores Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção, sobre o qual eu, com o conhecimento e consentimento dos autores, volta e meia, divago.