Finalmente, livres
Doíam-lhe os ombros, uma dor continuada, lancinante que lhe perturbava o sono e a impedia das tarefas rotineiras da sua, vulgar, existência terrena.
Ali, onde o vértice superior das omoplatas se encontrava, ao de leve, com a primeira (ou segunda) vértebra cervical, sentia, havia meses, essa “moideira” incomodativa que descia, persistente, alguns centímetros, ao longo da coluna. Impotente no seu sofrimento, havia-se resignado a ter de viver eternamente com ela.
Antes, porém, tinha consultado especialistas: sábios catedráticos haviam-na examinado, por dentro e por fora, com os mais sofisticados e modernos meios ao dispor da medicina actual. Havia também recorrido a outro tipo de sábios: os do espírito, que depois de lhe terem tentado ler a mente, invocado vidas passadas e convocado almas do além, haviam chegado ao mesmo diagnóstico que os mestres da ciência: nada de estranho existia ali, no seu corpo, e todas suas dores dependiam, única e exclusivamente, da sua cabeça.
Certa noite − uma noite de Primavera em que a Lua, generosa nas formas e na brancura, se pendurara num límpido céu sarapintado de estrelas −, durante o sono, sob aconchego das penas do seu édredon, sentiu, derradeiramente, aquela dor que a dilacerava. Dessa vez, contudo, esta foi tão intensa e dolorosa que a arrastou de um confuso e tortuoso sonho, e a despertou, em clímax, num grito violento e estrondoso, tão estrondoso capaz de acordar o sol que rompeu, imediatamente, numa manhã, clara, encantadora.
Despertada daquela angústia − e sem dores − sentiu-se tão leve, mas tão leve, que o leito lhe pareceu uma fofa nuvem, fiapos brancos de penas que aquela manhã luzidia tornava ainda mais imaculados. Estranhando tal leveza voou ao espelho, a mirar-se: os seus seios, outrora cheios e pesados, de atrevidos mamilos apontando o céu, haviam desaparecido, cedendo lugar a dois andróginos e incipientes botões; o ventre firme e roliço; as ancas fartas de mulher, haviam minguado; e onde antes terminava em triângulo, encaracolado, revoltoso, o seu sexo, brilhava agora, quase imperceptível, uma pueril penugem doirada. Nas costas, porém, ainda macias de menina, mesmo ali onde antes acabava o tal vértice, despontavam, agora, grandiosas, triunfantes, finalmente livres, prontas para voar, duas belas asas de querubim.
© Sofia Bragança Buchholz, 2006. Reprodução Interdita
Ali, onde o vértice superior das omoplatas se encontrava, ao de leve, com a primeira (ou segunda) vértebra cervical, sentia, havia meses, essa “moideira” incomodativa que descia, persistente, alguns centímetros, ao longo da coluna. Impotente no seu sofrimento, havia-se resignado a ter de viver eternamente com ela.
Antes, porém, tinha consultado especialistas: sábios catedráticos haviam-na examinado, por dentro e por fora, com os mais sofisticados e modernos meios ao dispor da medicina actual. Havia também recorrido a outro tipo de sábios: os do espírito, que depois de lhe terem tentado ler a mente, invocado vidas passadas e convocado almas do além, haviam chegado ao mesmo diagnóstico que os mestres da ciência: nada de estranho existia ali, no seu corpo, e todas suas dores dependiam, única e exclusivamente, da sua cabeça.
Certa noite − uma noite de Primavera em que a Lua, generosa nas formas e na brancura, se pendurara num límpido céu sarapintado de estrelas −, durante o sono, sob aconchego das penas do seu édredon, sentiu, derradeiramente, aquela dor que a dilacerava. Dessa vez, contudo, esta foi tão intensa e dolorosa que a arrastou de um confuso e tortuoso sonho, e a despertou, em clímax, num grito violento e estrondoso, tão estrondoso capaz de acordar o sol que rompeu, imediatamente, numa manhã, clara, encantadora.
Despertada daquela angústia − e sem dores − sentiu-se tão leve, mas tão leve, que o leito lhe pareceu uma fofa nuvem, fiapos brancos de penas que aquela manhã luzidia tornava ainda mais imaculados. Estranhando tal leveza voou ao espelho, a mirar-se: os seus seios, outrora cheios e pesados, de atrevidos mamilos apontando o céu, haviam desaparecido, cedendo lugar a dois andróginos e incipientes botões; o ventre firme e roliço; as ancas fartas de mulher, haviam minguado; e onde antes terminava em triângulo, encaracolado, revoltoso, o seu sexo, brilhava agora, quase imperceptível, uma pueril penugem doirada. Nas costas, porém, ainda macias de menina, mesmo ali onde antes acabava o tal vértice, despontavam, agora, grandiosas, triunfantes, finalmente livres, prontas para voar, duas belas asas de querubim.
© Sofia Bragança Buchholz, 2006. Reprodução Interdita
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