quarta-feira, maio 17, 2006

Uma bela canção

Estou preocupada com o grilo. Desde o momento que o encontrei, não voltou a cantar.
Também, é verdade que não o soltei. Podia dizer-vos que foi por falta de tempo mas, se o fizesse, estaria a mentir. É um facto que poderia ter regressado mais cedo a casa, ontem à noite, mas gosto de prolongar o trajecto, conduzindo, ao som de música, pelas artérias desertas da cidade. Acalma-me. Ajuda-me a relativizar os problemas.
Mas estou preocupada com o meu grilo. Digo “meu” porque não sei de quem é e porque, ao escolher-me para morada, passou a fazer parte da minha vida. E a verdade é que já o sinto, também, um bocadinho meu.
Gostei de tomar o pequeno-almoço com ele, ali na varanda, a fazer-me companhia. Preparei-lhe uma folha de alface tenrinha, roubada tacitamente no supermercado para ele. Falei-lhe de mim, do que gosto, do que sinto, do que sofro. Entusiasmei-me na parte dos sonhos e projectos e comovi-me na dos medos, dúvidas e angústias. Falei, em catadupa, emotivamente, tanto, que, quando acabei, me arrependi de tê-lo feito. Afinal de contas, não conheço o grilo. Não sei os seus propósitos ou intenções. Assustei-me ao imaginar os meus segredos espalhados ao vento, quando começasse a cantar. Mas talvez seja, até, por isso que não o tenha voltado a fazer; é possível que respeite, ainda, este meu receio. Mas depois, diverti-me com a ideia da minha vida musicada pelo grilo. É que, quem sabe, talvez dê uma bonita canção…