Sobre a Despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez: Reflexões (I)
"Quando entrei no carro, arrependi-me. A Marta estava feliz e eu pretendia fazê-la lembrar-se de um tempo que lhe custara tanto a esquecer. Que má que eu era, que egoísta. Mas a quem mais podia recorrer? À Nini, não tinha coragem. Restava-me a Marta. Ela conhecia o nome da médica, os procedimentos todos. Abortara de dois meses de gravidez e no mesmo dia estava em casa, sem os pais e os irmãos imaginarem sequer. Correra tudo bem e pagara uma fortuna. Afinal de contas era uma médica a sério, não uma “parteira” qualquer e isso tinha o seu preço. A Nini foi a Espanha, lembrei-me de repente. A Espanha eu não iria.
Pousei a cabeça no guiador do carro. Como era possível que trinta e quatro anos de convicções pudessem ser abaladas tão facilmente? Trinta e quatro anos de valores católicos por água abaixo quando me defrontava realmente com a situação. Sempre fui contra o aborto, embora não tenha ido votar no referendo, pois admitia que havia situações em que se poderia pôr em causa. Preferi abster-me. Mas, por princípio, sempre fora contra. Critiquei-o na Marta e condenei-o na Nini. Na Marta a falta de cuidado, a facilidade com que jogava com a sorte. Várias vezes lhe disse que, se não se dava bem com a pílula, deveriam usar preservativos, mas o António não queria e afinal também não foi ele quem acabou por engravidar. Na Nini, o absurdo da situação. Casada há um ano e meio, economicamente bem na vida, a planear ter filhos daqui a três e a fazer uma viagem de sonho daqui a um. Uma espécie de pequena volta ao mundo que uma gravidez inesperada iria alterar. Optou pela primeira, o que me pareceu repugnante. Fui frontal quando me pediu conselhos, não consegui ser de outra forma. O que era uma viagem comparada com um ser humano?
E agora estava eu ali, algures entre as duas. A irresponsabilidade daquela primeira vez e o medo de ter de abdicar de um homem que acreditava amar, por um filho que não planeara.
Entrei em casa da Marta, e, depois de muitas horas de conversa, chá e gargalhadas, consegui pô-la a falar do passado. Consegui saber tudo o que pretendia sem ela nunca imaginar que eu estava grávida e que punha seriamente a hipótese de fazer um aborto. Não queria que a minha vida fosse tema de conversa de café, embora soubesse que a maior parte das vezes as pessoas não o fizessem por mal. Às vezes chegava mesmo a interrogar-me se tinha verdadeiros amigos e se era realmente amiga de alguém, porque, durante toda a minha vida, nunca fora capaz de confiar assuntos que considerava sérios a outras pessoas. Só à minha irmã. Mas essa fazia parte de mim... essa era um prolongamento do meu eu.
Nessa tarde mais uma vez senti-me uma falsa amiga, pois a troco de uma declaração de confiança não confessei nada. Nem uma única palavra sobre o meu segredo. Vi-a chorar, lembrar-se de um passado que nunca esqueceria. Senti-me cruel, má, mesquinha, porque por defesa não era capaz de partilhar com ela uma dor que talvez a ajudasse de certa forma a sentir-se menos culpada. Não era a única no mundo... serviria isso de consolo?
A mim não servia e saí dali triste, muito triste, só capaz de encontrar conforto nos braços do João, que, como se adivinhasse, chegou a minha casa mais cedo nesse dia."
© Sofia Bragança Buchholz
In "De Mãos Dadas com a Perfeição", págs 82- 83;
Editorial Presença, 2003
Pousei a cabeça no guiador do carro. Como era possível que trinta e quatro anos de convicções pudessem ser abaladas tão facilmente? Trinta e quatro anos de valores católicos por água abaixo quando me defrontava realmente com a situação. Sempre fui contra o aborto, embora não tenha ido votar no referendo, pois admitia que havia situações em que se poderia pôr em causa. Preferi abster-me. Mas, por princípio, sempre fora contra. Critiquei-o na Marta e condenei-o na Nini. Na Marta a falta de cuidado, a facilidade com que jogava com a sorte. Várias vezes lhe disse que, se não se dava bem com a pílula, deveriam usar preservativos, mas o António não queria e afinal também não foi ele quem acabou por engravidar. Na Nini, o absurdo da situação. Casada há um ano e meio, economicamente bem na vida, a planear ter filhos daqui a três e a fazer uma viagem de sonho daqui a um. Uma espécie de pequena volta ao mundo que uma gravidez inesperada iria alterar. Optou pela primeira, o que me pareceu repugnante. Fui frontal quando me pediu conselhos, não consegui ser de outra forma. O que era uma viagem comparada com um ser humano?
E agora estava eu ali, algures entre as duas. A irresponsabilidade daquela primeira vez e o medo de ter de abdicar de um homem que acreditava amar, por um filho que não planeara.
Entrei em casa da Marta, e, depois de muitas horas de conversa, chá e gargalhadas, consegui pô-la a falar do passado. Consegui saber tudo o que pretendia sem ela nunca imaginar que eu estava grávida e que punha seriamente a hipótese de fazer um aborto. Não queria que a minha vida fosse tema de conversa de café, embora soubesse que a maior parte das vezes as pessoas não o fizessem por mal. Às vezes chegava mesmo a interrogar-me se tinha verdadeiros amigos e se era realmente amiga de alguém, porque, durante toda a minha vida, nunca fora capaz de confiar assuntos que considerava sérios a outras pessoas. Só à minha irmã. Mas essa fazia parte de mim... essa era um prolongamento do meu eu.
Nessa tarde mais uma vez senti-me uma falsa amiga, pois a troco de uma declaração de confiança não confessei nada. Nem uma única palavra sobre o meu segredo. Vi-a chorar, lembrar-se de um passado que nunca esqueceria. Senti-me cruel, má, mesquinha, porque por defesa não era capaz de partilhar com ela uma dor que talvez a ajudasse de certa forma a sentir-se menos culpada. Não era a única no mundo... serviria isso de consolo?
A mim não servia e saí dali triste, muito triste, só capaz de encontrar conforto nos braços do João, que, como se adivinhasse, chegou a minha casa mais cedo nesse dia."
© Sofia Bragança Buchholz
In "De Mãos Dadas com a Perfeição", págs 82- 83;
Editorial Presença, 2003
2 Comments:
Quantas vezes julgamos (mesmo que seja "sem maldade") actos de certas pessoas,e tempo mais tarde somos apanhados na mesma teia.
O que penso, é que lá no fundo estamos sempre, quando falamos de aborto, a falar de vítimas: mães, vidas, filhos, projectos... tudo cede um pouco o lugar à morte. O que choca mesmo ao lermos este texto é que de facto, perante a realidade os valores morais, a Fé, a ética, apesar de conservarem o seu lugar na equação, estão entre parêntises, como algo a que se poderá voltar mais tarde. Os factores, em ordem arbitrária são a morte, a vida e o sofrimento. E isso é desgastante. Mas como sempre, é também, bem real.
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