A Briga
Hoje, Demiurgo voltou para ver Lunata.
Como o esposo que regressa ao lar, cobardemente, depois de se ter perdido de amores, temporariamente, por outra donzela, também ele voltou cabisbaixo, carente e acima de tudo − e isto ele jamais confessará a Lunata − tremendamente humilhado. Ou pelo menos, na sua insegurança de “intruso” no Aldebarã, era assim que ele se sentia.
Todos nós sabemos que bar que é bar tem direito, de vez em quando − e sobretudo por parte dos seus clientes de sexo masculino − a ânimos exaltados, tons de voz elevados, picos de adrenalina, descargas exacerbadas de testosterona… mas o que Demiurgo estava longe de imaginar e, pior, de desejar, é que fosse ele próprio o protagonista da primeira briga no Aldebarã.
Reinava a maior gozação, com José Alencar entretido em danças nativas com a recém chegada Iracema, acompanhados ao batuque por James Joyce e seguidos por todos os ilustres presentes que, despojados de suas roupas − chapéus, paletós, coletes, camisas, calças, ceroulas, sapatos e polainas − se entregavam às maravilhas “orgiásticas” do bailado das virgens de tucumã. A certa altura, aproveitando o momento em que Joyce marcava os compassos apenas com meneios, um tal de Homem dos Limões teve a infeliz − e distraída − ideia de sugerir que se atassem quatro balões às pontas do Aldebarã, de forma a que este pudesse levitar e percorrer, assim, os céus do mundo inteiro. Ora, Demiurgo, um homem de ciência, habituado a unir e desunir moléculas e átomos na exacta proporção de uma precisa receita culinária, obcecado pela exactidão, pelo perfeccionismo, pela lógica e pela razão − e também, diga-se de passagem, um pouco solto pelos suspiros de musas, pelas beberragens artesanais e outras mistelas servidas no Aldebarã − ouve aquilo e…, pois, está claro, deixa sair, mais para si do que para os outros, mas, infortunadamente, em voz alta, a seguinte exclamação: − Homessa, mas não era já o Aldebarã um bar-nave??!
Em maldita a hora o fez! Paulinho Assunção, ali ao lado, ouvindo-o e não perdoando, atira-se a ele de dedo em riste, acusando-o, vejam só, de “realista”! E foi vê-los num duelo de esgrima, desembainhando insultos: “Se eu sou realista, vós sois distraído!” argumentava um; “Mas o que é a redundância senão um temor dos realistas?” dizia o outro; “Vós já o havíeis afirmado a treze de Janeiro…” atirava, novamente, Demiurgo; “Só os realistas vêem o perigo na repetidão, o perigo nas contradições, o perigo nos deslizes, o perigo na doce e desgovernada dialética.” parafreseava, Paulinho Assunção. E arremessava ainda, sublinhando, com Iesus Molerus e o seu famoso Tratado de ir e de voltar, citando a cidade, o ano e, calculem, a página!
Formara-se um círculo em volta deles e se aqueles homens desnudados, há minutos atrás, durante a dança, conferiam ao Aldebarã um ar pitoresco, agora, ali, tentando apartar aqueles dois cavalheiros exaltados, de sexos flácidos, barrigas abundantes, canelas tísicas e rabos chupados, eram dignos de um cenário, verdadeiramente, degradante.
De tamanha decadência, só Eça parecia ter consciência e, gargalhando, como era seu hábito, agarrado à sua elegante barriga peluda, teimava em repetir: Este bar é, mesmo, uma anedota!
E foi depois deste vexame, de ego ferido e envergonhado que Demiurgo regressou a casa de Lunata, procurando nos seus braços o conforto de um porto seguro, buscando no seu aconchego a compreensão dos verdadeiros amigos.
Mas Lunata não estava. E, assustaram-no, no chão, os restos dos seus cabelos de fada. [SBB]
Nota: O Bar Aldebarã é um projecto e ideia única e exclusivamente da autoria e responsabilidade dos escritores Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção, sobre o qual eu, com o conhecimento e consentimento dos autores, volta e meia, divago.
Como o esposo que regressa ao lar, cobardemente, depois de se ter perdido de amores, temporariamente, por outra donzela, também ele voltou cabisbaixo, carente e acima de tudo − e isto ele jamais confessará a Lunata − tremendamente humilhado. Ou pelo menos, na sua insegurança de “intruso” no Aldebarã, era assim que ele se sentia.
Todos nós sabemos que bar que é bar tem direito, de vez em quando − e sobretudo por parte dos seus clientes de sexo masculino − a ânimos exaltados, tons de voz elevados, picos de adrenalina, descargas exacerbadas de testosterona… mas o que Demiurgo estava longe de imaginar e, pior, de desejar, é que fosse ele próprio o protagonista da primeira briga no Aldebarã.
Reinava a maior gozação, com José Alencar entretido em danças nativas com a recém chegada Iracema, acompanhados ao batuque por James Joyce e seguidos por todos os ilustres presentes que, despojados de suas roupas − chapéus, paletós, coletes, camisas, calças, ceroulas, sapatos e polainas − se entregavam às maravilhas “orgiásticas” do bailado das virgens de tucumã. A certa altura, aproveitando o momento em que Joyce marcava os compassos apenas com meneios, um tal de Homem dos Limões teve a infeliz − e distraída − ideia de sugerir que se atassem quatro balões às pontas do Aldebarã, de forma a que este pudesse levitar e percorrer, assim, os céus do mundo inteiro. Ora, Demiurgo, um homem de ciência, habituado a unir e desunir moléculas e átomos na exacta proporção de uma precisa receita culinária, obcecado pela exactidão, pelo perfeccionismo, pela lógica e pela razão − e também, diga-se de passagem, um pouco solto pelos suspiros de musas, pelas beberragens artesanais e outras mistelas servidas no Aldebarã − ouve aquilo e…, pois, está claro, deixa sair, mais para si do que para os outros, mas, infortunadamente, em voz alta, a seguinte exclamação: − Homessa, mas não era já o Aldebarã um bar-nave??!
Em maldita a hora o fez! Paulinho Assunção, ali ao lado, ouvindo-o e não perdoando, atira-se a ele de dedo em riste, acusando-o, vejam só, de “realista”! E foi vê-los num duelo de esgrima, desembainhando insultos: “Se eu sou realista, vós sois distraído!” argumentava um; “Mas o que é a redundância senão um temor dos realistas?” dizia o outro; “Vós já o havíeis afirmado a treze de Janeiro…” atirava, novamente, Demiurgo; “Só os realistas vêem o perigo na repetidão, o perigo nas contradições, o perigo nos deslizes, o perigo na doce e desgovernada dialética.” parafreseava, Paulinho Assunção. E arremessava ainda, sublinhando, com Iesus Molerus e o seu famoso Tratado de ir e de voltar, citando a cidade, o ano e, calculem, a página!
Formara-se um círculo em volta deles e se aqueles homens desnudados, há minutos atrás, durante a dança, conferiam ao Aldebarã um ar pitoresco, agora, ali, tentando apartar aqueles dois cavalheiros exaltados, de sexos flácidos, barrigas abundantes, canelas tísicas e rabos chupados, eram dignos de um cenário, verdadeiramente, degradante.
De tamanha decadência, só Eça parecia ter consciência e, gargalhando, como era seu hábito, agarrado à sua elegante barriga peluda, teimava em repetir: Este bar é, mesmo, uma anedota!
E foi depois deste vexame, de ego ferido e envergonhado que Demiurgo regressou a casa de Lunata, procurando nos seus braços o conforto de um porto seguro, buscando no seu aconchego a compreensão dos verdadeiros amigos.
Mas Lunata não estava. E, assustaram-no, no chão, os restos dos seus cabelos de fada. [SBB]
Nota: O Bar Aldebarã é um projecto e ideia única e exclusivamente da autoria e responsabilidade dos escritores Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção, sobre o qual eu, com o conhecimento e consentimento dos autores, volta e meia, divago.
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