segunda-feira, outubro 23, 2006

Carta, nunca enviada, de Lunata a Demiurgo

Sabes, Demiurgo,

Hoje estive no Parque. Resolvi, assim, de repente, descer à Terra e visitar aqueles de quem a minha [nova] vida me apartou.
Está tudo muito mudado, ou assim me pareceu. Refiro-me à paisagem. As chuvas fizeram crescer a erva e os caminhos são agora mais densos, menos trilhados, requerendo largos passos, quase saltos, para os percorrer.
Quando me viram, os patos, vieram receber-me a correr, quack, quack, quack, balançando desconchavadamente o peso do corpo numa e noutra pata, alternadamente, naquela sua tão curiosa e cómica forma de andar. Fizeram-me uma festa! Uns disseram que estava mais magra. Outros que estava mais gorda. Outros que estava igual. Outros, ainda, que não estava nada igual, mas não sabiam definir, e falavam todos ao mesmo tempo, entusiasmados, eufóricos, atropelando as vozes uns dos outros, pegando-se, na divergência de opinião, reclamando a minha atenção, quack, quack quack, que os patos são assim, como sabes, têm tanto de amoroso como de caturrice.
O Pato Preto e a Senhora Pata também lá estavam, mais comedidos nos comportamentos e exclamações. Agradeceram muito a lembrança que lhes levei, um pão comprado de improviso numa confeitaria, ali, da zona, enquanto os outros, coitados, a gabavam, a namoravam, a cobiçavam, de água no bico que até tive pena de não ter levado para eles também.
...
No prado, montado por um cavaleiro que desconheço, vi Millstreet, cavalgando. Acenei-lhe ao longe e fui ver Paquito, já recolhido na cavalariça. Recebeu-me com um sorriso enorme, um relinchar de contente, as dentolas todas à vista, gigantes, o lábio superior arrebitado, retorcido! E que bonito que estava − parece que por lá passou o cabeleireiro − com a crina toda entrançada, em trancinhas pequeninas, muitas, a fazer lembrar um penteado africano!
Ibéria, a égua, também aparara as repas, certinhas, como as minhas. Ainda nos rimos com isso e nos pusemos a comparar: iguaizinhas que estamos! Não fossem as dela serem brancas como o marfim e as minhas − naquele dia − negras como o ébano, ainda diriam que éramos irmãs. E, com a ideia, desatamos a gargalhar que é assim que se passam os dias, felizes, descontraídos, entre amigos.
Saí, já o sol caíra no mar e todos seguido as suas vidas: o Pato Preto, Senhora Pata, Jovem Cisne e todos os patos dormiam aninhados, na erva, ao pé dos lagos; a Dona Gatita, vira-a entrar para casa do dono, na urbanização rural; Millstreet, Ibéria e Paco refastelavam-se, agora, com um repasto de feno nos seus respectivos estábulos.
E, sabes, Demiurgo, entristeceu-me, confesso-te, deu-me um sentimento miudinho, solitário e de abandono − tontices de menina, eu sei! − constatar que apesar de toda amizade, de todo o carinho e afecto, a vida deles continua e faz sentido sem mim.
E, como a deles, a tua, Demiurgo.

Um beijo daquela que sempre te quererá,

Lunata

© Sofia Bragança Buchholz, 2006. Reprodução interdita.

1 Comments:

Blogger mfc said...

A verdade é que só fazemos falta ... enquanto estamos presentes!

10:42 da tarde  

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