quarta-feira, outubro 04, 2006

O Ponto Final

Naquele dia ela decidiu que bastava. Se a ideia de viver sem ele lhe parecia insustentável, pior lhe parecia continuar a viver aquela tortura. Afigurava-se-lhe em vão a sua dedicação, a cada rejeição; os seus perdões, a cada ofensa; a sua infinita capacidade para ouvir o que a magoava. Demiurgo tornara-se egocêntrico, egoísta, autista na sua empatia É provável que já antes o tivesse sido. É provável não, é certo, mas a sua afeição por ela camuflara-o, disfarçando-o por entre mimos e atenções. Expirado o amor, e na ânsia de viver o tempo perdido, viera, então, ao de cimo como um ovo estragado, pernicioso à saúde dela, flutuando, indiferente, a cada uma das suas atitude ou comportamentos. Às vezes chegava a ser surreal. Demiurgo entrava em casa angustiado, deitava-se sobre o colo de Lunata deprimido, e chorava em cada desabafo as dúvidas que tinha em relação ao seu relacionamento. Mas com outra mulher! “O que quereria ela dizer com aquela ou aquela frase? E com esta ou aquela atitude? Porque desviava ela, agora, os olhos ao encontro dos seus? Amá-lo-ia, ela?”. Amá-lo-ia ela?!, ela Lunata, sim, adorava-o!, e com a paciência e incondicionalidade de uma mãe que cuida de um filho que lhe faz mal, ouvia-o e engolia aqueles desaforos uns atrás dos outros, com forças vindas, por ventura, de algo sobrenatural, para lhes conferir um sabor menos amargo e os conseguir, lenta e carinhosamente, digerir. E o mais estranho, para ela que em quarenta anos apenas sentira aquilo por uma única pessoa, era o ser assim, este sofrimento, esta angústia, com A., com B., ou com C., porque Demiurgo coleccionava-as como os anos, os que tinha e os que ainda lhe restavam, aqueles que fora privado delas pela união com Lunata, aqueles que lhe fugiam com o passar do tempo, correndo, com a idade. A cada ausência dele, a cada atraso seu, Lunata sofria baixinho no silêncio do seu quarto, no abraço do seu travesseiro húmido, de tristeza, para ao senti-lo, o ir receber impecável, bonita e bem disposta, de braços abertos às ofensas ou às migalhas de amor, ou fosse, lá, o que viesse dessa vez.
Mas nessa noite Lunata decidiu que bastava, e ao erguer imponente da Lua, cheia, redonda, enorme, maternal, regressou ao lugar, seguro e sem gravidade, de onde nunca deveria ter saído: o Mundo da Lua. Abriu, então, a porta de casa e, assim, sem olhar para trás, tentando não vacilar um segundo que fosse, fechou-a, determinada, para sempre. E com ela, para sempre, também, o seu coração.

©
Sofia Bragança Buchholz, 2006. Reprodução interdita.

1 Comments:

Blogger Sofia Bragança Buchholz said...

Obrigada, Romã :-)

1:32 da manhã  

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