sexta-feira, maio 02, 2008

Anita na Cama

Existe na convalescença da gripe um quê de conforto, de nostalgia do tempo da infância. Era nesta altura, passado o desconforto da febre e das mialgias, que finalmente conseguia dar atenção aos presentes que o meu pai me trazia, geralmente um livro da Anita, que ia engrossando, aos poucos, a minha vasta colecção, e que a minha avó me lia pacientemente à cabeceira da cama. Era também só agora, que conseguia ingerir a primeira refeição, esmeradamente preparada pela minha Jeju – a nossa querida empregada – e que consistia invariavelmente num bife suculento, partido em minúsculos pedaços, quase raspas de carne, que se misturavam com um saboroso molho de manteiga e eram envolvidos em pedacinhos de pão. Aquilo sabia-me deliciosamente e ainda hoje recordo esse pitéu, que a fome pós pirética exacerbava, e quase sou capaz de apostar que já não se criam vacas tão tenras e saborosas como as daquela altura.
Há uns dias, liguei a um amigo que me atendeu com uma voz febril, trémula e “entossicada”, desanimado com o seu estado gripal. Eu, lembrando-me desse lado positivo da doença, animei-o:
– Deixa lá, passa depressa. Ficas na cama… não tens ninguém que te vá ler a Anita à cama? – perguntei, na brincadeira, fazendo referência à minha infância, mas sem a explicar.
Ele, por entre dois cof, cof, retorquiu maliciosamente:
– Depende da Anita. Mas como estou, minha querida… – fez uma pausa para um suspiro resignado – acho que não a consigo ler nem em Braille!