A minha rua é a mais bonita da cidade. Atrever-me-ia a dizer do país, mas sei que é, apenas, uma afirmação subjectiva e emocional. Nela, modestas casas térreas misturam-se com antigas Villas numa dimensão humana que lhe confere harmonia.
Nesta altura do ano predominam os cheiros das rosas e das camélias, e o cantar do cuco e o chilrear dos pássaros são uma melodia constante. À noite, intensificam-se os odores, mas alteram-se os sons: o silêncio é cortado de vez em quando pelo ladrar, ao longe, de um cão, pelo movimento rápido de algum pequeno animal, pelo ciciar das árvores e dos arbustos.
Certa vez, a lua pairava alta no céu, alterei o caminho costumeiro que me leva do lugar onde estaciono o carro, a casa, seguindo pela travessa que ladeia o minúsculo quarteirão que os separa. Do lado direito, uma enorme casa – outrora palco de tertúlias literárias e serões ao piano – parece adormecida no tempo e na vida, num silêncio de cortar o coração a quem ainda, como eu, se recorda destes reconfortantes encontros. Espreito-lhe, saudosa, o frondoso jardim, miro-lhe, entristecida, as imponentes árvores seculares, adivinho-lhe, ao fundo os contornos do granito… e eis que surgido do nada, na noite escura e sombria, apenas iluminada pelo luar, qual conto de fadas, avisto um enorme coelho branco. Esfrego, incrédula, os olhos, recuo dois passos surpreendida, para logo os avançar em mais do dobro movida pela curiosidade e pelo encanto. Ele fita-me, alvo como um floco de neve, macio como um tufo de algodão, os olhos rubros como dois rubis. Estendo a mão e ele aproxima-se confiante, beija-me, ao de leve, os dedos, delicadamente, como um príncipe cortês, sedento de companhia, de uma boa conversa, quem sabe. Relembro, automaticamente, o antigo proprietário da casa, um “homem das leis”, alto e magro, de farta cabeleira branca, e quase acredito que me encontro numa história para crianças e que, por um feitiço qualquer, é perante ele que estou, agora transformado nesta espécie de roedor.
Nas noites seguintes não voltei a ver o misterioso coelho. Nem nos dias que se seguiram. E cheguei a duvidar do que os meus olhos presenciaram.
Os meses passaram e com eles as estações do ano e quase me esqueci deste surreal episódio. Mas, hoje, voltei a contrariar o costumeiro caminho que me leva a casa e a subir a travessa que ladeia a enorme casa desabitada. Não ia sozinha e relembrei a história a quem me acompanhava. Escarneceu, zombou, gargalhou, duvidou da minha sanidade mental à altura, mas estacou surpreendido, tão incrédulo como eu, quando o avistou: ao enorme coelho branco dos olhos encarnados.
Tive a certeza que não é um príncipe o coelho alvo que se atravessou no meu caminho (se o fosse, jamais teria aparecido também à outra pessoa). Contudo, estou certa de que tenho o privilégio de viver num conto de fadas e sinto-me uma verdadeira Alice na rua das maravilhas da Foz do Douro por morar onde, no meio da cidade poluída e barulhenta, cantam os cucos, florescem as camélias, e de vez em quando, aparecem até coelhos misteriosos.